Geralmente, quando falo sobre um livro, não costumo escrever quase outro só para comentá-lo. Mas alguns livros nos deixam com a cabeça cheia e pertubada, e esse foi um desses casos. Muitos consideram isso um mérito e até gostam dessa sensação, mas... eu não faço parte desse grupo, confesso.
Sempre ouvi falar desse livro. Ele vive circulando por aí: em filmes, vídeos, críticas... Sabia que dividia opiniões. Alguns detestam, outros amam com fervor. Então, decidi encarar a leitura. E essas foram algumas das minhas conclusões.
O livro é O Apanhador no Campo de Centeio, que é basicamente a história de um adolescente de 16 anos, o Holden Caulfield, que acabou de ser expulso de mais uma escola e passa uns dias vagando por Nova York antes de encarar os pais.
Muitas pessoas, seduzidas pelo sentimentalismo, tentam romantizar Holden como se ele fosse um “incompreendido”, mas, para mim — e isso me incomodou bastante ao longo da leitura —, Holden é mentiroso compulsivo (era insuportável a quantidade de vezes em que mentia durante todo o livro), egocêntrico, covarde, obsessivo, impulsivo, provocativo, agressivo, desequilibrado, completamente inconveniente, finge sensibilidade, mas raramente a demonstra de verdade.
Holden não é nenhum santo, nem aquele tipo de personagem “inocente perdido”. Ele é um garoto com a cabeça toda bagunçada, afundado em um luto mal resolvido pela morte do irmão e completamente à deriva, tentando achar um lugar no mundo sem se entregar à falsidade que tanto critica — e não percebe que já está imerso nela.
● Alguns pontos-chave que me chamaram atenção:
Holden tem uma desconfiança intensa do mundo adulto, desprezando-o. Idealiza de forma extrema a infância e a inocência, e repudia totalmente tudo o que ameaça essa idealização.
Até aí, ok. Ele só tem 16 anos. E, sinceramente? Me identifiquei completamente aqui. Dos meus 12 aos 16, eu era igual.
Mas... são possíveis sintomas que talvez estejam muito mais ligados ao trauma da perda do irmão do que a qualquer outra coisa — embora também não se possa descartar completamente a possibilidade de negligência ou até abuso (sexual ou não) na infância.
(Para não ser injusta: além de me identificar, sei que no meu caso não foi abuso, e sim negligência. E, com ele, pode claramente ser o mesmo — embora, no caso dele, a morte do irmão pareça ser o fator mais marcante.)
Crianças emocionalmente negligenciadas ficam mais vulneráveis a abusos e podem acabar atraindo ou tolerando a aproximação de pessoas abusivas (vejo isso no Holden em relação ao Mr. Antolini), não por culpa, mas por uma lacuna afetiva e falta de referências saudáveis.
Holden busca afeto, proteção e escuta, mas não sabe como reconhecer relações seguras. Por isso, se aproxima de adultos questionáveis — como o Mr. Antolini — e se sente culpado e confuso depois.
Holden parece sim ter um histórico de trauma prévio, possivelmente abuso negligenciado e/ou sexual não nomeado (mesmo sendo virgem).
Percebo que o livro deixa isso em aberto, mas inteligentemente espalhado nas entrelinhas.
● Focando mais em Mr. Antolini
A parte em que Mr. Antolini o acaricia a cabeça enquanto ele dorme é estranha, invasiva e cheia de tensão. Me deixou extremamente agoniada.
Antolini ainda tinha dado bebida alcoólica ao Holden (menor de idade) antes, o que agrava a situação.
Depois tenta justificar como “carinho”, mas Holden sente um alerta muito forte e foge.
Além disso, Antolini tenta se colocar como mentor, salvador, o que é um padrão comum de manipuladores que se aproveitam da vulnerabilidade emocional dos jovens.
Trecho do livro relacionado ao ocorrido que comentei:
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— Não tem importância. Já estou acostumado a dormir em camas curtas — respondi. Muito obrigado. O senhor e a senhora Antolini salvaram mesmo a minha vida hoje.
— Você sabe onde é o banheiro. Se precisar de alguma coisa, basta dar um berro. Vou ficar ainda um bocadinho na cozinha... A luz te incomoda?
— Não, nem um pouquinho. Muito obrigado.
— Está bem. Boa noite, bonitão.
— Boa noite, Professor. Muito obrigado.
Ele foi para a cozinha e eu tirei a roupa no banheiro. Não pude escovar os dentes porque não havia trazido escova. Também não tinha pijama, e o Professor Antolini se havia esquecido de me emprestar um. Voltei para a sala, apaguei o abajur junto do sofá e me deitei só de cuecas. O sofá era um bocado pequeno para mim, mas na verdade eu seria capaz de dormir em pé, sem pestanejar. Fiquei acordado só uns dois segundos, pensando nos troços que o Professor tinha dito. Aquela estória de descobrir o tamanho da mente e tudo. Ele era mesmo um camarada inteligente pra chuchu. Mas não consegui ficar com a droga dos olhos abertos e peguei no sono.
Aí aconteceu um troço. Não gosto nem de falar no assunto.
Acordei de repente. Não sei que horas eram nem nada, só sei que acordei. Senti uma coisa na minha cabeça, a mão de uma pessoa. Puxa, fiquei apavorado pra diabo. Num instante vi que era a mão do Professor Antolini. Sabe o quê que ele estava fazendo? Estava sen-tado no chão, ao lado do sofá, no escuro e tudo, e estava assim me fazendo festinha ou um carinho na cabeça. Puxa, devo ter dado um pulo duns mil metros.
— Que negócio é esse?
— Nada, estou sentado aqui, admirando...
— Quê que há, afinal? — perguntei de novo. Não sabia que droga ia falar, estava confuso pra burro.
— Que tal falar um pouquinho mais baixo? Estou só sentado aqui...
— Está mesmo na hora de ir embora – falei.
Puxa, como eu estava nervoso. Comecei a vestir a porcaria das minhas calças no escuro. Quase não acertava, de tão nervoso. Conheço mais tarados, nas escolas e tudo, do que qualquer pessoa, e eles sempre resolvem ser tarados na hora que eu estou por perto.
— Onde é que você tem que ir? ele me perguntou. Estava tentando aparentar muita naturalidade e controle e tudo, mas não estava natural coisíssima nenhuma. No duro.
— Deixei minha bagagem e tudo na estação. Acho melhor ir buscar. Todos os meus troços estão lá dentro.
— As malas vão estar no mesmo lugar amanhã de manhã. Agora trata de voltar para a cama. Também vou me deitar. Quê que houve com você?
— Nada. Só que todo o meu dinheiro e meus troços estão nas malas. Volto daqui a pouco. Apanho um táxi e volto num instante falei. Puxa, estava me embaraIhando todo, no escuro. O problema é que o dinheiro não é meu, é da minha mãe, e eu...
— Não seja ridículo, Holden. Volta para a cama. É o que eu vou fazer também. O dinheiro está bem seguro até de manhã...
— Não, fora de brincadeira, tenho que ir. Tenho mesmo.
Tinha quase acabado de me vestir, só que não achava a gravata. Não me lembrava onde tinha deixado a droga da gravata. Vesti o paletó e tudo, sem ela mesmo. O Professor Antolini estava sentado agora na poltrona grande, um pouco afastado de mim, me espiando. Estava escuro e tudo e não dava para vê-lo direito, mas eu sabia que ele estava me olhando, sem a menor dúvida. E também continuava bebendo. Dava para ver, na mão dele, o copo de estimação.
— Você é um garoto muito estranho. Muito estranho mesmo.
— Sei disso respondi. Nem me dei ao trabalho de procurar muito pela gravata. Fui embora sem ela. - Até logo, Professor. Muito obrigado. Fora de brincadeira.
Ele me acompanhou até a saída e, quando chamei o elevador, continuou parado na droga da porta. Ficou só repetindo aquela estória de que eu era "um garoto muito estranho, muito estranho mesmo". Estranho uma ova. Ele ficou esperando a titica do elevador chegar. Juro que nunca vi um elevador demorar tanto em toda a droga de minha vida. Eu não sabia que porcaria ia dizer enquanto o elevador não vinha, e ele continuava ali, em pé, por isso falei:
— Vou começar a ler uns bons livros. Vou mesmo.
O negócio é que eu tinha que dizer alguma coisa.
Era uma situação embaraçosa pra burro.
— Apanha tua bagagem e volta correndo pra cá. Vou deixar a porta só encostada.
— Muito obrigado. Até logo!
Até que enfim o elevador tinha chegado. Entrei e desci. Puxa, eu estava tremendo feito um desgraçado. E suando também. Quando me acontece um troço assim meio tarado, começo a suar como um filho da mãe. Esse tipo de coisa já me aconteceu mais de vinte vezes, desde que eu era garotinho. Não aguento isso.
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(O Sr. Antolini chama Holden de "sonny", uma expressão coloquial que pode significar algo como "garoto", "campeão", "amigão" ou "parceiro", dependendo do tom. Algumas traduções optaram por adaptar como "bonitão" para reforçar esse tom.)
● Relação com crianças e obsessão pela inocência
Holden vive uma dissonância interna, uma tentativa de ser herói de uma inocência que ele mesmo compromete. Ele acha que quer proteger a pureza nas crianças, mas essa pureza é idealizada e serve mais para protegê-lo do que para realmente proteger os outros.
Isso pode sugerir desejo de preservar o que ele já perdeu ou o que ele não quer perder.
● Flascínio e desconforto com a sexualidade
Holden afirma sim que é virgem. No capítulo 9 ou 10, ele diz algo como:
“Nunca fiz nada, sou virgem. [...] Mas não é por falta de tentativa.”
Ele tenta várias vezes se aproximar de garotas, mas sempre se sabota, sente culpa, pena, ou simplesmente não quer seguir adiante.
Ele tem muitas oportunidades de envolvimento sexual, mas no final, acaba "fugindo" de todas.
(Particularmente não acho isso estranho para alguém de 16 anos, mas eu também sou "esquisita" então, sei lá.)
● Sobre Jane
Eu até vi uma certa sinceridade quando ele narrou sobre o passado dele com a Jane. (Mas, como ele mente sempre, isso o torna um narrador bem questionável.)
A Jane parece ser a única figura com quem Holden teve uma conexão profunda e respeitosa.
Ele se lembra dos detalhes do passado (quando eles eram menores e vizinhos), de como segurava a mão dela, de como ela chorou e ele respeitou o momento e tudo mais...
Mas, mesmo com ela reaparecendo em sua vida através de seu colega Stradlater, ele nunca tem coragem de procurá-la. Isso mostra como ele está preso à ideia dela, e não à pessoa real.
O que demonstra que, possivelmente, ela também é alguém idealizada por ele, assim como Phoebe (irmã de Holden).
Ele queria protegê-la do Stradlater por realmente se importar com ela, ou queria proteger a idealização que fazia dela?
● Sobre Phoebe
Em muitas análises de O Apanhador no Campo de Centeio tendem a suavizar ou romantizar a relação de Holden com Phoebe, muitas vezes ignorando implicações mais incômodas.
Holden diz querer proteger a inocência de Phoebe, mas, na prática, usa a irmã como apoio emocional, transformando-a quase em uma terapeuta e esperando que ela resolva suas dores internas. (Sem contar a parte em que ele a coloca em uma situação de ter que esconder coisas dos pais.) Isso a obriga a crescer emocionalmente antes da hora — exatamente o oposto do que ele afirma desejar. Isso está longe de preservar a inocência de alguém. Ele até tenta afastá-la dos perigos do mundo adulto, mas não cuida dela de forma genuína.
Fica a pergunta: ele realmente se preocupa com a inocência e a ingenuidade dela? Que tipo de inocência, afinal, ele está tentando proteger? Phoebe vai crescer inevitavelmente. Se Holden quisesse mesmo protegê-la, deveria se importar com sua estrutura emocional — mas isso não acontece. Ele foca na inocência comportamental, quase como uma imagem que quer preservar. No fundo, parece mais preocupado com o que ela representa para ele do que com quem ela realmente é.
É estranho. Em várias partes do livro, Holden soa como se não quisesse exatamente proteger Phoebe de perder a inocência. Ele não apenas idealiza Phoebe como criança, mas também resiste profundamente à ideia de que ela possa crescer, ganhar autonomia ou desenvolver desejos próprios. Isso, por si só, pode ser interpretado como uma forma de objetificação emocional: ele a transforma em um símbolo, e não em uma pessoa. É uma relação carregada de controle afetivo. Ele quer que ela permaneça pequena, dependente, que o admire, que tenha uma mente aguçada, mas sem consciência plena do mundo. Rejeita o crescimento físico dela, mas exige maturidade emocional — desde que isso o beneficie. O que é, no mínimo, bastante questionável. Trata-se de uma forma de manipulação emocional.
Holden condena os adultos e seu mundo por serem falsos, hipócritas e corrompidos, mas ele mesmo bebe, fuma e anda por aí sem dar satisfações a ninguém — exatamente como um adulto.
Particularmente, eu não entendo: ele rejeita o sexo com repulsa, mas aceita drogas com naturalidade? Não que ele precisasse querer sexo — não acho estranho ele evitar isso —, mas é curioso que ele escolha conscientemente hábitos adultos como beber e fumar, que também corrompem a pureza que ele tanto idealiza. Essas escolhas foram dele, ninguém o forçou. E isso o torna, no mínimo, contraditório. Ele diz odiar o mundo adulto, mas adota várias de suas práticas, enquanto guarda a sexualidade como um último reduto de pureza. É difícil não ver nisso uma grande hipocrisia e falsidade — o que, claro, pode ser comum em alguém de 16 anos, mas não deixa de me soar desconcertante.
Além disso, acho bastante estranho a parte do poema que ele lembra como uma cantiga, que no original consiste em encontros íntimos. Ele fixou isso a ponto de fantasiar constantemente sobre crianças se encontrando apenas com ele — e só com ele —, em um lugar isolado, recusando-se a aceitar que essas crianças cresçam. Há algo profundamente inquietante nisso, para mim.
Crianças, infelizmente, podem perder a "inocência" ainda sendo crianças. Mas, ao meu ver, o que realmente o perturba não é a perda da inocência em si, e sim o fato de elas simplesmente se tornarem adultas — seja lá o que isso signifique para ele.
O POEMA ORIGINAL: "Comin’ Thro’ the Rye" — Robert Burns (1782)
Comin thro’ the rye,
Gin a body kiss a body
Need a body cry?
Ilka lassie has her laddie,
Nane, they say, ha’e I;
Yet a’ the lads they smile at me
When comin’ thro’ the rye.
Amang the train there is a swain
I dearly lo’e mysel’;
But whaur his hame, or what his name,
I dinna care to tell.
Gin a body meet a body
Comin thro’ the grain,
Gin a body kiss a body,
The thing’s a body’s ain.
Ilka lassie has her laddie,
Nane, they say, ha’e I;
Yet a’ the lads they smile at me
When comin’ thro’ the rye.
Tradução de “Comin’ Thro’ the Rye” para o português
Se alguém encontra alguém
Passando pelo centeio,
Se alguém beija alguém
Precisa alguém chorar por isso?
Cada moça tem seu rapaz,
Nenhum, dizem, tenho eu;
Mas todos os rapazes sorriem pra mim
Quando passo pelo centeio.
No meio da multidão há um rapaz
Que eu amo mais que a mim mesma;
Mas onde ele mora, ou qual é seu nome,
Não quero dizer.
Se alguém encontra alguém
Passando pelo grão,
Se alguém beija alguém,
Isso é assunto só dos dois.
Cada moça tem seu rapaz,
Nenhum, dizem, tenho eu;
Mas todos os rapazes sorriem pra mim
Quando passo pelo centeio.
(Há um tom de leve provocação, como se a narradora, mesmo sem um par oficial, fosse objeto de desejo ou atenção. Querendo ficar no/ser o centro do campo de centeio — assim como Holden.)
Eu até acho que posso estar sendo bem doida nessa parte do poema/cantiga e em relação a ele. E isso tudo, na verdade, seja somente super proteção da parte dele e não tenha segundas intenções sombrias, — mesmo tendo atitudes bem questionáveis. E que ele seja somente um garoto assombrado e "ingênuo". (De forma alguma quero soar militante, Deus me livre.) Mas... São coisas que me "descem" bem "quadrado" e me fazem sim questionar suas reais intenções. (Até pelo motivo dele mentir o tempo todo no livro, o fazendo ser um narrador muito questionável.)
Fico me perguntando: para Holden, o "perigo" de as crianças crescerem e se tornarem adultas estaria no fato de ele enxergar os adultos como monstros ou ameaças reais? (Creio que não. Não me parece ser isso.) Ou ele simplesmente os considera hipócritas e falsos (como ele também é)? Afinal, qual é exatamente o problema dele com os adultos? (Lembro que também tive aversão aos adultos nessa fase da vida, mas nem eu saberia dizer com clareza o motivo.)
O curioso, para mim, é que ele mesmo comete diversas contradições e age de forma hipócrita, mesmo sem ser um adulto por completo (o que, convenhamos, é algo comum a qualquer ser humano, em qualquer idade). Mas, se a questão é que ele não quer se tornar um adulto, por que adota tantos comportamentos tipicamente adultos? E se tudo isso diz respeito apenas a ele, por que arrastar outras crianças para esse conflito? O que elas têm a ver com isso?
Veja, confesso também que, nessa fase, me incomodava — até mais que o normal (como também incomodava o Holden) — o fato de os outros quererem se apressar e demonstrar simpatia pelo mundo adulto, seja no modo de se vestir inadequadamente, seja na vontade de começar a namorar ou até mesmo de se envolver sexualmente. Mas isso era algo sobre mim, meu núcleo relacional, a minha faixa etária da época (dos 12 aos 16 anos). Ainda assim, continuo sem entender a obsessão dele pelas crianças.
Enxergo o campo de centeio de Holden como uma prisão camuflada de cuidado, e não como um abrigo ou algo realmente protetor, como ele tenta fazer parecer.
Me soa mais como o Peter Pan, que aprisionava os meninos perdidos contra "o Capitão Gancho", vulgo "maturidade".
Eu realmente o vejo como um projetinho de Peter Pan: ele quer que as crianças sejam crianças para sempre, com somente ele no comando.
Chegou a usar até a Sally como uma espécie de Wendy, e ficou igualmente bravo por ela não querer "fugir" com ele.
Com minha paranoia atacando novamente e me deixando inquieta, fui pesquisar sobre o autor.
● J.D. Salinger (Jerome David Salinger)
Salinger começou sua carreira escrevendo contos para revistas como The New Yorker, nas décadas de 1940 e 1950. Muitos desses contos foram aclamados e mais tarde reunidos em coletâneas, como Nove Histórias (Nine Stories, 1953).
Apesar do sucesso, Salinger era um homem extremamente reservado. Após a fama de O Apanhador, ele se afastou da vida pública, recusando entrevistas, evitando aparições e vivendo de forma reclusa por décadas em Cornish, New Hampshire.
Coisas importantes a se observar sobre o próprio autor:
Ele tinha preferências muito questionáveis em relação à relacionamentos.
Jean Miller
Ela tinha 14 anos quando conheceu Salinger (ele tinha 30).
Mantiveram uma amizade emocionalmente intensa, com cartas e encontros, mas sem relação sexual até os 19 anos.
Ela disse que perdeu a virgindade com ele aos 19, e ele terminou com ela no dia seguinte.
Segundo ela, ele valorizava sua “pureza” e a rejeitou depois que ela deixou de corresponder a essa idealização.
Joyce Maynard
Joyce Maynard escreveu extensivamente sobre seu relacionamento com J.D. Salinger em seu livro de memórias "At Home in the World" (1998). Na obra, ela narra como, aos 18 anos, foi cortejada por Salinger, então com 53, após a publicação de um artigo seu no The New York Times Magazine. O relacionamento durou cerca de nove meses, período em que ela abandonou Yale para viver com ele em New Hampshire.
Maynard descreve Salinger como uma figura controladora e emocionalmente manipuladora, que a isolou de amigos e familiares. Ela relata que ele a incentivava a manter uma aparência juvenil e a desencorajava de buscar independência ou maturidade emocional. Após o término abrupto do relacionamento, Maynard enfrentou dificuldades emocionais e profissionais, sendo criticada por expor detalhes de sua vida pessoal e acusada de tentar se beneficiar da fama de Salinger.
Em 2021, Maynard escreveu um artigo na Vanity Fair intitulado "Predatory Men With a Taste for Teenagers", onde comparou Salinger a outros homens poderosos acusados de comportamento predatório, como Woody Allen. Ela afirmou: "Fui preparada para ser a parceira sexual de um narcisista que quase descarrilou minha vida".
Claire Douglas
Quando o conheceu, tinha 16 anos. Casou-se com Salinger aos 22; ele tinha cerca de 36.
Terminaram o casamento: ela com 37 e ele com 48.
Separaram-se após 12 anos de casamento.
Tiveram dois filhos: Margaret e Matthew.
Ele se afastava emocionalmente durante as gravidezes e impunhava regras rígidas de alimentação e espiritualidade.
Claire disse que a vida com ele era extremamente isolada e sufocante.
Margaret Salinger (filha)
No livro Dream Catcher, Margaret contou que:
O pai era emocionalmente ausente e controlador.
A tratava com frieza quando ela engravidou, rejeitando-a nesse período.
Em seu livro Dream Catcher: A Memoir, Margaret Salinger relata que, ao informar seu pai, J.D. Salinger, sobre sua gravidez, ele reagiu de forma extremamente fria e insensível. Segundo ela, ele afirmou:
"Você não tem o direito de trazer uma criança para este mundo horrível que você não pode sustentar."
Margaret ficou tão impactada com essa resposta que anotou as palavras imediatamente. Ela também menciona que seu pai esperava que ela considerasse a possibilidade de um aborto.
Posteriormente, ao conversar com sua mãe, Claire Douglas, sobre essa reação, Margaret descobriu que Claire havia passado por experiência semelhante durante sua própria gravidez. Claire revelou que, ao engravidar, enfrentou uma depressão suicida ao perceber que a gravidez apenas repelia Salinger.
Esses relatos indicam um padrão de comportamento de Salinger, caracterizado por reações negativas e distanciamento emocional diante de gravidezes, tanto da esposa quanto da filha.
Ela também relatou que o pai a submetia, desde a infância, a dietas extremas, rituais de silêncio, isolamento e outras práticas que ela considerava "espiritualmente bizarras". Disse que Salinger vivia recluso, com comportamentos excêntricos e até fanáticos.
● Padrão observado:
Salinger preferia mulheres muito jovens (14 a 20 anos).
Quando elas amadureciam ou ganhavam autonomia, ele as rejeitava.
Idealizava juventude, pureza e inocência.
Há indícios de que usava o controle e o isolamento como forma de manter suas relações do jeito que queria.
● "Pureza" para Salinger não era só espiritual — era ligada à juventude física e emocional.
Salinger não buscava apenas pureza como estado de alma ou caráter. Ele associava “pureza” à juventude extrema, ao corpo imaturo, à falta de experiência, à docilidade emocional, ou seja, tudo o que compõe a infância ou adolescência inicial.
Mulheres adultas poderiam ser puras, modestas, espirituais mas isso não bastava para ele.
O que o atraía era o estado anterior à maturidade, mesmo que ele nunca admitisse isso diretamente.
Isso não é só um fetiche, isso é um comportamento regressivo e possivelmente predatório, pois ele só valorizava a pessoa enquanto ela estivesse nesse estágio vulnerável e dependente.
Ele não buscava amar a pessoa, mas apenas possuir e congelar um estado nela: o da inocência idealizada.
Se a inocência era perdida (naturalmente, com o tempo, ou uma gravidez), ele não via mais valor naquela pessoa.
● Se ele valorizava tanto a pureza, por que a destruía?
Manter alguém inocente eternamente é impossível.
Sabendo disso, ele talvez "quebrasse" a pureza antes que a vida o fizesse, para manter o controle do processo.
Como um jardineiro que destrói a flor porque não quer vê-la murchar.
Há indícios (em cartas e relatos) de que Salinger também se sentia culpado e desgostoso com essas dinâmicas, mas era incapaz de rompê-las.
Então, o ciclo se repetia: idealizar → se aproximar → possuir → rejeitar → isolar-se.
● Holden Caulfield: Reflexo disso tudo?
Sim.
Até mesmo no livro, tem uma parte em que se fala em "padrões mentais", quando Holden está falando com Carl sobre o pai de Carl ser psicanalista.
Então, vamos aos padrões mentais.
– Ele quer "proteger" crianças, mas não quer que elas cresçam.
– Sua relação com a irmã é carinhosa — mas tem algo estranhamente idealizado, quase possessivo.
– Ele quer ser o “apanhador” que impede a queda da infância para o “abismo” da vida adulta.
E assim como Holden, Salinger, quer estagnar o tempo.
Ele quer impedir o amadurecimento porque (de uma forma questionável) não suporta a complexidade, a sexualidade, a perda da "pureza" — a qual ele idealiza. E a perda do controle que ele acha que tem sobre a pessoa.
● Citando uma parte que está no livro:
"... Andei e andei, e continuei pensando na Phoebe, indo todo sábado ao museu assim como eu ia antiga-mente. Fiquei pensando que ela ia ver todos aqueles troços que eu tinha visto antigamente, e que ela estaria diferente cada vez que fosse lá. Não cheguei a ficar deprimido de pensar nisso, mas não vou dizer que tenha ficado alegre como o diabo. Há coisas que deviam ficar do jeito que estão. A gente devia poder enfiá-las num daqueles mostruários enormes de vidro e deixá-las em paz. Sei que isso não é possível, mas é uma pena que não seja. De qualquer maneira, continuei a pensar em tudo isso enquanto ia andando."
Salinger tem o padrão de idealizar "pureza". Me soa bem Holder personagem de sua obra. Engraçado que só ele poderia profanar essa pureza e mesmo assim, quando fazia, ou ela envelhecia, pedia a graça para ele. Ele tinha aversão a mulheres grávidas (quer algo mais adulto que gestar?) Muito estranho. Por isso eu achava estranho a relação de Holden com sua irmã mais nova e sua suposta visão das coisas. E esse papo dele cercado com crianças e somente ele de mais velho em um lugar em que pessoas se encontram para fazer algo íntimo e escondido... Não me soa nada bem.
Em um momento pesquisando sobre Salinger, lembrei de alguns comportamentos semelhantes ao de Holden no livro e que me chamou a atenção, como o momento em que Holden força vômito no banheiro. O autor tinha comportamentos semelhantes de acordo com quem conviveu com ele.
Ou seja, eles tem sim bastante coisas em comum e são coisas bem questionáveis na minha opinião.
Assim como Salinger, Holden também repetia o ciclo (mas de uma forma mais velada, é claro) de idealizar → se aproximar → "possuir"/usar → rejeitar → isolar-se.
Como ele fez com Jane, Sally e até mesmo Sunny e Bernice. (Não irei me aprofundar sobre essas personagens, mas lendo o livro eu percebi que ele fez isso, sim.) E em um outro tipo de grau, Phoebe.
No livro, em um momento de conversa com Holden, Phoebe comenta sobre um filme — que, na realidade, não existe — chamado "O Médico". A história gira em torno de um médico que tira a vida de uma menina aleijada por "piedade", sufocando-a com um cobertor, e acaba sendo condenado à prisão perpétua por isso. Mesmo assim, a menina "volta" para visitá-lo e agradecê-lo pelo que ele fez (provavelmente como um fantasma, ao que tudo indica). Essa passagem é tão avulsa e desconectada da trama principal que me chamou bastante a atenção. É, no mínimo, curiosa. Acaba evidenciando como o Salinger tem uma visão bastante estranha (e, de certo modo, questionável) sobre "preocupação" e "piedade".
Temo que, assim como Salinger, Holden tenha essa mesma visão completamente deturpada e obsessiva por uma "pureza" e "inocência", a mesma "preocupação" e "piedade" questionáveis. E que talvez, por detrás desse suposto "cuidado" e suposta "preocupação", seja simplesmente, de fato, somente uma forma de querer controle e poder.
Temo que Holden seja um grande reflexo do Salinger.
O que faz esse livro ser, para mim, algo que realmente não cai nada bem.
Dito isso tudo... Finalizo com o maravilhoso Alborghetti, que praticamente já faz parte de um pedaço da minha personalidade.
Que bela análise! Faz muito tempo que li, mas me fez rememorar, e ver pontos que nem observei.
🔥 Caramba, ficou muito boa a sua análise!! Fico muito grata por você ter interpretado essa obra!!